Sábado, 29 de Outubro de 2011
Capítulo 10 - Saudade

Os dias passaram e a rotina (se rotina se poderia chamar à convivência de um humano, com um ser mitológico) instalou-se nas nossas existências. Era bom. Era saudável.

 A minha vida, a nossa vida, tornara-se mais estável do que nunca. Nunca, na minha longa existência pensara em sonhar tal coisa. Não por não o querer. Afinal de contas, era uma sensação maravilhosa, que me aquecia o ser. Mas a triste verdade era que nunca soubera que tal realidade poderia existir. A minha vida nunca fora próspera a normalidades, desviando-se sempre para o bizarro anormal, que me marcava a vida inútil.

Cada vez mais rápido, a lua se completava…

O futuro. Nada me assustava mais do que a incerteza do futuro ambíguo.

Uma vontade louca apoderava-se de mim, incitando-me a ficar. A esconder-me de toda a situação… Sabia que, caso fizesse, existiram consequências. Consequências para mim e… pior do que isso, consequências para ele.

Teria de partir em três dias.

Por alguma razão desconhecida, sentia-me mais vazia que nunca. Porém, esse vazio não me deixava indiferente. Em vez, revoltava-me de uma maneira incompreensível, traduzindo-se na vontade que possuía de atirar com tudo ao chão.

Nunca me sentira tão insciente sobre a minha vida… Não sabia o porquê de não querer partir, nem o porquê de isso me causar desconforto. Desconhecia as consequências dos actos que ansiava praticar, como o de permanecer, à espera que a lua recuasse da sua inteira majestosidade… E, mesmo após de todas estas questões por resolver, aquela que mais me intrigava era a de não compreender o porquê de Ivan, sem eu proferir qualquer palavra, perceber todas as minhas dúvidas.

Por múltiplas vezes descolei os lábios para perguntar estas tais interrogações inquietantes. Mas, outra vez, eu não era um ser corajoso. Não no que tocava a assuntos da “alma”, mesmo que num ser que, tristemente, não a possuísse.

 

Infelizmente, melancolicamente e desagradavelmente os três dias que dantes me restavam, acompanhados por um vestígio daquilo que Ivan designava de esperança, escaparam-me por entre os dedos finos.

Com os primeiros raios do sol, que furavam, por entre as cortinas corridas da sala, soube que teria de partir.

Fá-lo-ia nessa noite…

Chegou-se a mim com um prato branco, repleto de pedaços de carne e com aquilo que aprendera ser massa. Refastelou-se no sofá ao meu lado, enquanto picava com um garfo pedaços do seu almoço. Os seus olhos percorreram o meu corpo curvilíneo, num observar contemplante.

- Queres um bocadinho – perguntou, espetando-me o garfo debaixo do meu nariz, com um sorriso aberto espalhado nos lábios.

Olhei para o conteúdo do garfo em desdém.

- Até me ria, se possuísse alma… - disse, num tom de brincadeira. A seriedade abateu-lhe o garboso rosto.

Pousou o prato e o garfo na mesinha que ladeava o sofá e, no momento em que abriria a boca para protestar, cobri-a com um dedo. E, depois, com os meus lábios.

Com as nossas bocas, dançámos uma dança que apenas nós conhecíamos, acompanhados pela melodia surda da luxúria.

- Tens de partir? – Perguntou-me. Nunca a sua voz soara tão ríspida e fria. Fria ao ponto de enregelar, o ambiente antes confortável que nos envolvia.

- Não o quero – disse, tentando não ferir os seus frágeis sentimentos. – Mas… sim, tenho. Há muito que o sabes. O masoquismo é desnecessário…

Vi a contracção dos seus músculos, para que nenhuma palavra brotasse dos seus lábios carnudos. Em vez, levantou uma sobrancelha e substituiu a contracção dos seus lábios, por um sorriso vasto.

- Anda – acabou, por dizer.

 

Sentámo-nos na areia à espera da noite.

A luz do sol brilhava por entre espessas nuvens e o mar agitava-se, demonstrando a sua fúria por meio de ondas enormes, que se enrolavam no momento que batiam na areia amarela.

- Está um bom dia para surfar – acabou por dizer, após longos minutos de um silêncio altivo e desconcertante.

- Então vai – respondi.

- Vou mesmo meter ali dentro um pezinho, com a quantidade de seirens que por lá vagueiam.

- Medricas – queixei-me. – Anda. – Num único movimento levantei-me a mim, e com o apoio de uma mão, a ele. Olhou-me com tamanha surpresa, que um pesado suspiro saiu por entre os seus lábios. – Anda! – Voltei a exclamar. – Não queres que te leve ao colo, pois não?! – Perguntei-lhe, com algum sarcasmo.

- Até me ria, se possuísse alma… - disse, tentando imitar o meu tom de voz, com a excepção de que ele, se partiu às gargalhadas.

Num salto apenas, atirei-me para a água gélida. Talvez devesse ter despido primeiro, e pelo menos, os calções de ganga que anteriormente envergava e que agora flutuavam sobre o mar, aos pequenos bocados.

- Anda! – gritei, da água.

Também ele se atirou para água, após ter tirada a t-shirt de cor acinzentada, enfeitada com desenhos de um abstraccionismo obtuso.

Nadou até mim, com grande desenvoltura e, quando me atingiu, rodeou-me com os braços e tomou os meus lábios.

- Como é que o fizeste? – Perguntei-lhe. – Naquele dia, naquela praia… Como é que te livraste do meu encantamento?

Enterrou uma mão, num dos bolsos dos seus calções brancos, e, com um branco sorriso, retirou de lá duas pequenas bolas, de cor azul.

- São tampões para os ouvidos – explicou-me. – Uso-os para que a água não entre para lá e, quando os pões, pouco ou nada ouves… A única razão porque fui ter contigo, foi porque eu sabia o que tu eras e queria descobrir mais… Não tinha a certeza que me ias atacar.

- Isso não foi uma decisão muito inteligente – disse-lhe, sorrindo.

- Vais ter saudades minhas – acusou-me, apesar da sua frase um pouco aleatória, mais soar a uma pergunta.

- Não sei o que isso é – admiti.

- Saudade é o sentimento que corresponde à nostalgia, sentida quando alguém de que gostas está longe. Alguns autores descrevem-na como “o amor que permanece”.

Sorri-lhe e ele retribuiu-me o sorrir.

- Não sei porque é que não gostas da tua cauda – acabou, por dizer. – É muito bonita.

Com uma mão tapei-lhe a boca e sussurrei-lhe para que se calasse:

- Schhh… Não se dizem asneiras – disse-lhe. – É como uma grande cicatriz… É feia e lembra-me de coisas más.

- Muito pelo contrário - discordou, como sempre… - É linda e é apenas uma recordação de que sobreviveste.

- Tens mais algum sítio para onde ir? – Perguntei-lhe, mudando de assunto, para um que me preocupava muito mais.

- Porquê? – Perguntou, levantando o sobrolho.

- Estás demasiado perto da praia – disse-lhe. – Andarão muitas seirens pelo mar e, bem, tu sabes…

- Eu consigo proteger-me – disse, com um uma voz sonante, como quem declarava guerra.

Não precisei de muita força para enterrar a sua cabeça de baixo da onda que surgia, deixando-a lá ficar por alguns segundos.

Quando o retirei da água, os seus olhos esbugalhados fitaram-me numa incredulidade pura.

- Estavas a dizer? – Perguntei-lhe sarcasticamente.

- Eu vou para casa de um amigo – resignou-se.

- Boa decisão.

- Quanto tempo é que vais demorar?

- Não sei – admiti. – Depende do que houver para discutir.

- Prometes-me que voltas?

- Prometo, é claro que prometo. Afinal de contas, eu disse que ficaria por dois meses.

- Tenho medo – acabou, por dizer.

- Tu ficarás bem, não te preocupes.

- Não sejas tola. Não é por mim que temo… Mas sim por ti. Não quero que nada de mal te aconteça.

- Agora quem é que é tolo? Nada me vai acontecer. E mesmo que algo me acontecesse… Não se perdia grande coisa. Afinal de contas, eu sou só um corpo.

Os seus olhos, dantes brilhantes, mostravam-se opacos e frios:

- Nunca, mas nunca, digas isso! – Gritou, exaltado. – Tu… Não! Eu proíbo-te de dizeres essas palavras. Tu és muito mais que um corpo, Adriadne.

Um arrepio agudo percorreu o meu corpo e eu fitei-o, pronta para ripostar, mas, tal como eu fizera antes, ele calara-me com os seus lábios e assim, por entre carícias e afectos nos deixámos ficar, até a lua, com o seu total esplendor iluminar a água, agora cor de prata.

- Tenho de ir – acabei, por dizer.

Vi os seus lábios moverem-se num subtil “não”, porém nada disse. Largou a minha mão e deixou-me partir.

Nenhuma outra palavra foi proferida.

Já tudo tinha sido dito.


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publicado por Jessie Bell às 00:41
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De funeraire. a 17 de Novembro de 2011 às 22:13
Sim, era (:
Eu lembro-me de ti. Quando criei este blog, eu só fui voltar a seguir (quem seguia no outro) poucos blogs, mas o teu tinha sido apagado, I think. E fiquei muito triste. Mas agora, fui ver a história e lembrei-me de tudo - desconfiei devido ao nome - e voltei a ficar feliz. Tive saudades tuas.
E muito obrigada querida <3 Tenho que me actualizar!


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